domingo, 15 de maio de 2011

Passo póstumo

“Even that when we're already over,
I can't help myself from looking for you”
Adele


O óculos escuro já não era necessário naquele dia nublado, frio, desamparado. As grandes lentes pretas escondiam os olhos baixos, levemente irritados, do vento que cortava a face. Os passos vagos pela calçada, as mãos dentro do bolso da bermuda que cobria até os joelhos, o pensamento errante divagava lentamente ao toque da brisa, recolhendo-se a cada carinho que as curvas do rosto recebiam.

Em palavras não se conta uma história. Não apenas. A sua ordem pelas frases de nada vale se não fizerem sentido para um, ou dois. Dessa história queria contar apenas para que possam se abrir ao que já está gravado na pele, as cicatrizes indolores tatuadas inconscientemente.  Uma história que poderia ser um romance, um grande livro vendido nas prateleiras amareladas, e ao mesmo tempo uma crônica, conciso retrato de um estado de espírito.

Grandes amores não surgem de uma hora para outra, desestabilizam, impregnam o corpo e o envenena.  O tempo é fundamentalmente necessário. As fases passam, as pessoas podem ficar mais um pouco, mas em algum lugar ali dentro, a escuridão silenciou o inquieto sentimento. Sob os escombros, algo ainda pulsa, disfarçado de dor, orgulho, medo, repúdio, piedade. Permanece adormecido, porém vivo.

Ao despertar, as dores, as causas, as tempestades desaparecem. Quando verdadeiramente ele acorda, os olhos cerrados levemente, a boca sem contração, a mesma posição, os corpos que trocam calor. Qualquer coisa que possa demonstrar o meu amor. Amor escondido, receoso, machucado, que se aquecia mais uma vez. O tempo agiu entre nós, o espaço, as pessoas. Hoje o seu amor não é mais meu, sua atenção, seu toque.

Mas durante segundos, como pela primeira vez, o coração inquietou, as mãos tremeram. A resposta do corpo, da vontade da alma, tomou todos os cômodos da casa vazia. Os olhos que invadem o olhar do outro, admirando a sua leve profundidade, sua singela complexidade. As pontas dos dedos que escorregam pela pele, os reflexos dos pelos que se ouriçam, os lábios que se tocam, a respiração que fica gradualmente ofegante. O exterior tremula e o interior estremece.

Durante muito tempo, procurei por muitos lugares e, sem notar, a sua figura estava presente em cada sombra minha. Não sabia compreender o que restava comigo, se havia luz ou se haviam se apagado. Nós poderíamos ter conseguido tudo o que desejávamos. Aliás, os que ainda desejamos, os anos não apagaram, os mesmos desejos, a mesma vontade. Uma figura que não remete à nostalgia, mas constrói novos caminhos, novas trilhas. Talvez as mesmas que eu passei e não tinha notado sua presença nelas.

Não importa quanto esforço será feito. As coisas darão errado ou certo. Sei o que está guardado e quando clamarem por ele, responderei. Mas se o fizerem novamente, meu amor tomará a frente. E o seu é o que me impulsiona a seguir em frente. Se eu agir como se não me importasse, é porque de alguma maneira quero manter intacto o frescor da brisa que paira por entre as paredes trancadas. E eu faria qualquer coisa para que o mundo entendesse. Para que você sentisse, de verdade, o meu amor retribuído.

E o que já estava escrito, hoje é uma página em branco. Nenhuma história termina, nada pode apagar pequenas palavras, postas e dispostas de acordo com o futuro. Não se dá um título a uma obra não finalizada. Como em uma lembrança póstuma, o passado prescreve e o futuro escreve as gotas de chuva que escorrem através das lentes escuras, incerto, vagante. Qualquer passo para mostrar meu amor.”

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Insomnia

"As noites se pareciam dia. Os dias apareciam de noite. Madrugada por madrugada, eu perdia a noção de espaço, de tempo. Muitas das vezes eram pensamentos que pairavam longe, idéias vagas que começavam a tomar a cabeça como de assalto, de surpresa, e possuíam todo um ambiente, preenchiam com total naturalidade uma mente inocente, sem vínculos com o que estava por detrás daquelas janelas escuras que me impediam de olhar além. Muitas vezes essas idéias eram mínimas, eram sonhos, expectativas de uma meta inalcançável, de objetivos vãos, de um parâmetro tolo.

Não sei explicar. Minha grande cama com um lençol cinza novo, almofadas de penas de ganso com fronhas de cores aleatórias, como verde e vermelho, ou azul e amarelo, além do meu, e inseparável, edredom. Confortável, aconchegante. Minha cama seria um belo de um recanto do sono. Mas nas últimas semanas não tem sido. Outro dia foi por causa do temporal que estremeceu até a porta. Semana passada foi por causa do calor que nem sequer amenizava  com a presença do ventilador de teto. Dias atrás, novamente, a chuva e o barulho de passos no corredor dentro de casa que me deixaram alerta para tentar reconhecer de quem seria aquela marcha. Mas não é sempre que há uma desculpa sólida, como hoje em que ao deitar, as palavras surgiam à mente, especulavam sobre meu futuro, e mais uma vez me encontrava sentado com o computador ao colo observando o quadro azul pendurado na parede.

Fechava os olhos, tentava pensar 'azul', que dizem trazer tranqüilidade e, em diversos momentos, comigo funcionou essa técnica de materializar na escuridão das pálpebras cerradas a cor dos mares e céu. Porém não funcionara. Pensei em coisas então boas, conquistas, momentos de felicidade, e a única coisa que obtive foi resgatar mais memórias, mais histórias. Enquanto tudo isso acontecia internamente, meu corpo por fora relatava indiretamente esse movimento cerebral, seja virando de um lado para outro, seja arrumando pela milésima vez o travesseiro, ou apenas mexendo os pés em um movimento rápido, contínuo, como se estivesse impaciente.

Talvez seja isso, afinal. Seria falta de paciência ou apreensão? Com certeza nada em minha mente para me tirar o sono. Já se foram os dias em que poderia perder horas por problemas comigo, com outros, com o mundo. Nas últimas semanas, apenas tive momentos muito bons, reencontrei-me, finalmente tive a paz de espírito tão almejada. Antes dormia para me refugiar de medos, acordava assustado, com receio de que pesadelos se tornassem reais, por mais que grande parte apenas estava entrando de fora para dentro, e não o caminho inverso. A tempestade lá fora estava dentro de mim. Hoje, ela permanece apenas impondo respeito fora dessas paredes, sem fazer com que eu a tema.

Finalmente consegui enxergar que se aqui chove, em outra parte do mundo não. Um mundo de possibilidades se abrira em minha mente. Antes o que era um refúgio, um quarto branco, hoje se torna de natureza acesa, colorida. Se eu sinto falta de algo? Talvez da minha rotina e das suas próprias quebras. Sinto falta do meu espaço, do meu próprio lugar. Essa parte entra o grande paradoxo que acabei construindo, e diversas pessoas também devem ter passado ou passam pela mesma situação: aqui é meu lar, mas não minha casa.

Casa é onde criamos oportunidades de crescer, onde podemos ter algo que chamamos de nossos, seguirmos nossas vidas de acordo com o que estabelecemos ser certo para aquele momento. Lar é onde podemos voltar sempre que as oportunidades afundam, quando o próprio espaço começam a se tornar sufocante e as decepções da vida nos arrastam e esfregam areia em nossos rostos limpos. Quando menor, minha casa era meu lar. Hoje, tendo em vista minha situação, casa se tornou outro lugar, mas o lar nunca se muda, apenas pode transferir-se, caso as pessoas nela contidas, e também responsáveis pelo nome que recebe, também se vão para outro.

Sinto realmente falta da minha casa, do meu espaço, da minha rotina. Mas não que isso seja o motivo de eu não conseguir dormir. Em vez de querer estar aqui, vezes deitado de bruços, vezes sentado, gostaria de estar andando por outros lugares, reparando em rostos, dançando aquela música até amanhecer, cantando para quem quisesse ouvir. Sinto falta das minhas quebras de rotina, dos meus surtos, de querer caminhar, fazendo frio ou calor, de chegar atrasado sem motivos aparentes ou adiantado com segundas intenções, sem ter que explicar muito. Quis fazer e fiz. Mais um paradoxo: descobri que sinto falta de me sentir “aprisionado” em minha rotina, mas, ao mesmo tempo, de me sentir mais livre para poder quebrá-la da forma que eu quiser.

Mas nem isso seria motivo para que eu perdesse meu sono, pois sei que cedo ou tarde isso deve acabar. Então, se nada disso pode ser, onde está o problema? Estaria com medo de dormir? Muitas vezes, quando adormeço, imagens me tomam tanto a mente, entram em forma de sonhos, de histórias inconscientes que revivo dias sim, dias não. Lembro-me até de uma vez estar despertando de uma espécie de cena cheia de mistérios, um tanto quanto sombria, porém familiar, que não me dava medo. Eu estava naquela nebulosa aparição duplamente. Em meio a grandes eucaliptos que podia sentir o aroma, eu narrava a mim mesmo o que deveria fazer, e ainda me relembrava a todo instante de epifania que na manhã seguinte eu deveria escrever sobre o que estava sonhando. Era até metalingüístico.

Tenho uma relação mais pacífica atualmente com meus sonhos e pesadelos. Antes eles até me assombravam. Quando pequeno, me lembro diversas vezes que tinha até receio de atravessar o corredor e chegar ao quarto dos meus pais para “pedir ajuda”. Até ao abrir a porta, me sentia desprotegido, um frio me tomava a espinha e as pernas, os meus olhos pareciam que sairiam da órbita de tão abertos que ficavam. Corria para a beirada da cama onde minha mãe até hoje dorme, a acordava e avisava: “Tive um pesadelo”, sussurrando mais pelo fator medo do que pelo fato de estar de madrugada.

Naquela paciência materna, ela avisava meu pai que acordava de sobressalto com a visita noturna, se levantava, me acompanhava até a minha cama, me colocava novamente sob as cobertas ou lençóis e se sentava, esperando a confiança retornar. Quando muito apavorado, pedia para que ela se deitasse comigo até que eu retornasse ao sono. Mais calmo, porém acordado, sempre a via saindo do quarto. Abraçava um dos travesseiros, virava o rosto para a parede e apenas esperava o sono chegar. E ele vinha. Agora, seja lá o porquê ele não se aproxima.

Mas, como descrevia, tenho uma relação muito mais harmoniosa com meus pesadelos, sonhos e até insônia. Tento descrever, entender, decifrá-los. Aqueles que eu me lembro com detalhes, e normalmente são os piores. Enquanto insone, faço dos momentos de ócio os mais produtivos. Me atualizo sobre meus interesses, leio algum livro que esteja  ao alcance das mãos no criado-mudo, ouço algum álbum recém-lançado ou apenas procuro aquelas clássicas para cantar sem reproduzir nenhum som, aliás, motivo que evito sair desse quarto, indo para o banheiro e voltando, quando necessário. Um barulho que for pode acordar a todos e essa sensação não é das melhores, como em um revival de quando era pequeno, tenho medo de abrir a porta, fazer algum ruído e despertar o monstro escondido em algum canto da casa.

Reviro-me, troco a lista de músicas, bebo um pouco de água e nada. Meu pai se levanta, nota a luz do quarto acesa por debaixo da porta e a abre, sem cerimônias, como costume desta casa. Me observa com um olhar de reprova, como se avisasse: “Vou contar a sua mãe!”. Mas não tenho culpa. Além disso, nenhuma para se perder essas noites de sono. Não me sinto culpado por nada, tenho a mais plena consciência de todas minhas ações e palavras. Aliás, culpa é algo que exclui das minhas noites e dias. Só devemos nos sentir culpados por coisas que fizemos e que prejudicaram outras pessoas, diretamente. Aliás, mais fácil alguém me prejudicar que eu a alguém, devido ao meu histórico de bondade excessiva. Mas passado às cinzas resta; o fogo que está queimando e as folhas em cima da mesa prestes a serem jogadas nas chamas me interessam mais.

Ainda permaneço sem nenhum sinal aparente de sono. Nenhum bocejo ou aparente cansaço mental ou físico. O quadro permanece no mesmo lugar, nele uma árvore sombreada que resiste em meio a um rio, um lago. Por entre as frestas da janela em tom escuro, a claridade do sol começa a aparecer, ainda bem fraco, e com a luz artificial apagada o quarto assume ainda aquele tom matinal de lugar fechado, onde tudo permanece escuro, mas nítido. Não entendo ainda o porquê dessas noites de insônia, não é nenhum medicamento, nenhum efeito colateral. Mas se tentar compreendê-la, seria uma preocupação, algo que me tiraria mais o sono. Então, que essas minhas novas noites apenas me tragam coisas boas, sem precisar perder o sono para ganhá-lo novamente. No final, mais um paradoxo. Mas o que seria melhor para um tema como a insônia? Uma oposição entre dia e noite seria clichê demais para mim. Então, um paradoxo entre perder sono e ganhar tempo. Como na vida, algumas coisas se esvairão, mas em contraste outras serão adicionadas. Como em uma balança que deve sempre manter-se equilibrada. Em paz."

(Texto produzido dia 14/01/11)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Desabafo de mais um fim de ano

Anos atrás eu estranharia esse sentimento, essa falta de ar que toma conta do peito vazio. Às vezes o que toma conta dentro do peito é mancha negra, que vai consumindo minuto após minuto, cada esboço de esperança. Se existe algo que eu mais confio é o que escrevo. As palavras ditas, mencionadas não podem ser apagadas com uma simples borracha. Estão ditas, é convicção, é o que naquele instante a mente sentia e o coração pensava. A união delas, as sentenças, entra como flecha, dissolve-se no peito e corrói. Ajudam apenas essa infestação negra no peito aumentar. A felicidade alheia é vista como um ataque, a ausência desse tipo de esperança, de alegria nessas épocas do ano machuca.

Por isso que sempre escrevo aos fins de ano. É a época em que todos os delírios de felicidade tomam conta de todos. Isso seria mágico, seria bonito. Mas apenas seria. Para mim não é. Não consigo ao fim de um longo ano conseguir enxergar as estrelas e as lindas renas que circulam pelo ar, em um espírito invisível. Inevitável que essa época chegue,que coisas novas venham. Aliás, seria mais do que necessário mudanças, modificações. É imprescindível. Porém, terminar um ciclo, um ano, respirar um ar novo, podre por dentro, com manchas cinza corroendo.

Comemorar festas que não são minhas. Sorrir para não ter os olhos perdidos em algum ponto baixo do horizonte. Não pediria nada demais para mim. Se Papai Noel existisse, ou algo superior a nós, que pudesse nos presentear com o que queremos, ou que nos ajude a cumprir nossas missões, nossos objetivos. Não quero ser muito depressivo, apenas quero que entendam que não posso achar mágica em uma data que apenas me deixa ainda mais descontente com o que eu fiz. Ano após ano. Um misto de arrependimento, de dor por se sentir tão vazio por procurar coisas que são extremamente distantes do que eu realmente posso obter. Talvez erre todos os anos por desejar sempre o máximo que eu puder, sem medir esforços e conseqüências. Por ser tão ingênuo ao enxergar, almejar o mais alto, sem ver a estrada que pode custar os pés. Eu deveria desejar menos.

Esse talvez seja meu erro, meu pior defeito. Talvez deva listar mais alguns, caso Papai Noel leia isso, e julgue definitivamente se ele vem ou não. Além de sempre desejar muito, eu desejo os dos outros. Infelizmente, a grama é mais bem cuidada, verde, reluzente ao lado do que por aqui. O Natal nunca me tocou. Nunca ele beijou minhas mãos, me encarou e seduziu com os olhos e disse que me queria. Profundamente, ele nunca me tocou de leve pelas costas, beijou a minha pele, me abraçou forte e pediu para que eu ficasse naquela noite. Os outros possuem isso, eu não tive. Invejo quando o Natal toca dessa maneira, invejo o ódio, invejo o amor alheio. Algumas pessoas amam tão pouco e isso parece ser o suficiente.

Defeitos múltiplos, minha habitual mudança de humor que hostiliza ainda hoje a tantos. Extremamente mimado, o que faz com que tudo que eu faço deve ser o melhor de mim e as pessoas devem ver dessa maneira. Se não o vêm, ou a partir do momento em que me torno apenas mais um em meio de poucos que foram escolhidos, tento fugir, esquecer. Um covarde, fraco, monstruoso, sofredor. Tantos adjetivos, substantivos que podem se fazer uma lista que tenho certeza que eu, de dez qualidades listadas, apenas uma me agrada, ou que pense que seja verdade.

Não sou perfeito, nem almejo ser. Mas queria pelo menos saber como é esse Natal, esse espírito que contagia a todos. Não é o Natal, o ano-novo. A cada final de ciclo, paramos nossa vida para colocar na balança as coisas que fizemos, o que alcançamos. Saúde, paz, alegria são tão relativos. Claro, esqueci mais um adjetivo: complicado. Uma mente complicada, complexa, emaranhada. Traumas, medos que daqui de dentro desse quarto escuro fazem sentido. Para outros, não mais. Antes eu passaria despercebido, agora as coisas estão expostas, minhas feridas estão ao ar, apodrecem e começam escorrer sangue velho e grosso.

Às vezes me pego no topo do mundo, olhando o horizonte, cheio de nuvens, trovões, raios em minha volta e aqui dentro de mim, com as janelas e persianas fechadas, tudo parece pior. O mundo no curvar do olhar perdido parece novo. O que permanece por esses montes não consegue deteriorar, como uma doença que te tira forças, mas não te consome. Como em um vício, dia pós dia, uso depois de uso, já fixa, invade e eu não posso renunciar. De cima, apenas o vento consegue ressoar nos ouvidos, os olhos depositados no meio das nuvens que começam a precipitar uma cortina de água, que lentamente chega ao chão, como um grande cobertor que cobre uma terra distante, mais verde, mais próspera.

Uma terra que apenas fica nos meus sonhos, no fundo dos olhos. Fins de ano me fazem pensar em como todos podem estar feliz, se apenas eu consigo ser tão miserável com minha própria vida, ou fazê-la assim. Se o sentimento de felicidade por acabar um ano se aproxima, eu me afasto dessa realização por ser tão longe de mim. Não posso comemorar os olhos cansados, as mãos que mal são tocadas, a boca franzida. Não posso reclamar da minha vida. Aliás, nunca se deve, mesmo quando escapa algo dos lábios. Fins de ano me mostram apenas o quão posso ser pequeno.

O que eu gostaria não importa mais saber, se nem Papai Noel ou o que presenteia a todos com dons e vontades puderam fazer. Mas se vale, meu presente ideal seria não ser mais um na estrada curva inevitável. Não ser uma pessoa que caminha, deixa suas marcas pelas casas ao longo da floresta mal-iluminada. Não gostaria mais sentir que tudo não é suficiente, que as ações ao longo do ano foram apenas parte da vida de alguém, enquanto, a minha própria, estou escrevendo sozinho, com uma caneta de pena cinza velha, que falha em cada traço. Como se eu em cada erro, deslizasse e não manchasse o papel.

Fins de ano representam esperança, mudanças, expectativas. Enquanto acreditava em Papai Noel, nada acabava. Quando tudo parece estar sem sentido, sem forma, a vida se repete, o marasmo acontece. Tudo novamente, como uma grande peça de teatro que se repete, ano após ano. Arrastam-se as dores, benzidos os enfermos e abençoados os que comemoram. Quanto menos se sentir, mais letal e menos doloroso. Mais sentimentos, mais mortal e mais doloroso. Natais, fins de ano são para pessoas que possuem algum traço de esperança, que confiam e esperam.

Já esperei, confiei no tempo, em mim, em o que poderia. Mas permaneço sendo o mesmo dentro das metamorfoses que eu só encarnei. Não digo de uma época, de um período. Digo por uma pequena estrada que percorri, os jardins que cuidei e que outros sentiram o doce perfume que exala a pele lisa. Menos eu. Se Papai Noel puder um dia ler o que eu escrevo, queria apenas que ele realizasse meu desejo de me dar um carro, ou talvez uma conta bancária mais recheada. Tudo bem, não adianta pedir essas coisas. E Papai Noel não existe.

Desejar uma transformação, talvez que alguém reacenda essa esperança seria também pedir muito. Daqui do topo do mundo, estou quase à mesma altura do céu, e o que eu vejo são luzes, estrelas. Todas elas brilham, e eu que parecia estar perto e poder tocá-las, apenas observo, sem luz, com os olhos apagados, desejando apenas que o peito tomado pela escuridão possa brilhar mais uma vez. Eu realmente não sinto que deveria comemorar. Eu não gosto de finais de ano. Não acredito neles nem em finais felizes. E finais felizes não existem, também.”

(Texto produzido dia 09/12/2010)

domingo, 13 de junho de 2010

23


"Cuidado com o que deseja

Nunca paramos para pensar realmente o que se passa durante um ano da nossa vida. Todas as idas e vindas, os sentimentos, as pessoas que passaram. Tudo em um ano não pode ser resumido em algumas sentenças, meras palavras. Pessoas até dizem que a única coisa que se pode notar é o envelhecimento. “Nossa, como ele ficou com ar de mais velho”, “Reparou nas rugas?”, “E o cabelo branco, ou a falta de?”... Na realidade, não se pode afirmar desta forma. Não por indelicadeza. Mas pelo fato de que apenas parecemos mais velhos a partir do momento em que perdemos a perspectiva de vida, de esperança. Quando a dor do viver ultrapassa a vontade de alcançar. Parecer mais velho que sua verdadeira idade nada tem a ver com parecer cansado. Tem a ver com esperar a vida passar, cruzar os braços, deixar que o tempo escorra através de um furo na pele.

Nestes 23 anos muita coisa já aconteceu para ser descrita. Aliás, vinte e três. Engraçado como as idades marcam a vida das pessoas mesmo sem ter um fato a ser ressaltado. Seria apenas “tradição”. Os dezoito anos, os quinze, os vinte, os trinta, os quarenta e cinco, os sessenta e até os vinte e quatro. Mas 23, não há alguma superstição, alguma decisão prévia a ser tomada, nenhuma mudança corporal para ser explorada. Idade sem poesia, sem significado.

Mas para mim, 23 anos podem significar mudanças. Tudo vai começar no pontapé inicial. No dia do meu aniversário. Acreditei desde pequeno que o dia em que eu completo anos é um dia mágico, um dia até mesmo de esperança. Para mim, aquele dia seria o espelho do que viria durante os trezentos e sessenta e cinco seguintes. Se fosse um dia calmo, um ano calmo. Um dia turbulento, um ano turbulento. Pensando bem, tem dado até que certo. Uma boba superstição, mas que pode até me render uma carga extra de vontade de seguir em frente.

Um aniversário de 23 anos bom seria aquele que eu não pense muito. Que haja mais ação. Um dia que eu sorria, chore. Mas nada ao extremo. Um dia até que morno. Estou pedindo um ano de calmaria, um ano de mais paz... Pelo menos sentimental. Já no profissional, queria um ano corrido, então devo correr, tem que ter ação. Está certo. Estou pedindo demais. Ou é calmo, ou é corrido. Queria a combinação perfeita entre o vermelho e o azul. Entre o salgado e o doce. Entre o antigo e o contemporâneo. Queria um dia que refletisse um novo ano, que tudo se misturasse, se absorvesse lentamente. Nada de mais um ano conturbado. As lições que tinham para ser aprendidas, dos vinte aos vinte e dois já foram suficientes.

Um dia em que reflexões sobre a vida tomem novas perspectivas. Aliás, nem que elas existam. Já passamos muito tempo vivendo perguntando o que é a vida. Sendo que a verdadeira questão é “como viver a vida”. O que encaramos em cada instante, cada segundo não importa. Importa como o fazemos. Perdemos tempo olhando para o horizonte pensando em um futuro que pode até parecer mais irreal do que distante. Perdemos. O futuro a ser pensado é aquele que está debaixo da ponta dos nossos pés. Aquele degrau que nota-se ao toque, bem rente.

Consome-se muito o futuro, o passado, o presente. Banaliza-se. Explora-se. Descontextualiza-se. Esquecemos que a vida de um ser humano, seus sentimentos, sensações, vivências ultrapassam apenas três tempos. Cada idade, cada instante pode ser um tempo diferente. Hoje sou um pretérito do subjuntivo. Daqui minutos, quero ser imperativo. Amanhã um presente do indicativo...

Obstáculos vão existir. A distância, a procura pela felicidade não está logo aqui. Ou está. Ninguém sabe. Apenas saberei se a felicidade está ou esteve aqui, quando sentir. Mas ninguém sente. Ou eu sinto. Ou ninguém sentirá. Pena, falta, compaixão. Devo sentir? Talvez daqueles que me queiram mal, dos que me queiram bem, dos que se perderam em vão, respectivamente. Ou não. Inimigos virão e devem vir, sim, afinal são eles que nos fortalecem e ensinam que um mal não justifica outro. Amigos virão e devem ir, pois aqueles que você mais gosta não podem ficar presos, já que sentimentos libertam e não aprisionam. Perdidos e perdedores virão e devem se sentar para que ouçam onde erraram, o por quê não fazer dessa maneira. Talvez eu seja todos eles ao mesmo tempo. Talvez não seja nenhum. Apenas sei que posso ser, se eu quiser.

Mais do que na hora de inclinar-se na própria vida. Na minha vida, em mim. Não quero mais enxergar por dentro, fazer um autoconhecimento. Disso, todos nunca saberão. Ninguém sabe ao certo o que é até encontrar-se em uma situação inesperada ou extrema. Não nos reconhecemos em diversas ações, palavras, por não sabermos exatamente o que somos. Não sei quem eu sou e prefiro dessa maneira. Ou não. Quem sabe, daqui alguns dias, mude de ideia. Mal de geminiano.

Apenas, nesse ano que os 23 chegam, o desejo é ser realizado. Tudo antes estava sendo escrito, e agora está na hora de sair desse plano virtual das perspectivas. Hora de mudar, de se reinventar. 23 não pode ser um ano cabalístico, mas pode ser um ano forte, de ações, expectativas alcançadas e de realizações. Clichê é, mas pelo menos vem me consumindo interiormente esses desejos. Sábio quem disse que “Você é o valor que você próprio se dá”, e igualmente aos seus sonhos. Basta agora cantar parabéns, apagar o isqueiro no lugar das velas, comer o pedaço do tradicional bolo junino de morango. E desejar.

... pois pode se tornar real."

(Texto produzido dia 13/06/2010)

domingo, 4 de abril de 2010

Neblina

"A noite parecia mais escura naqueles dias. Era a neblina que envolvia com seu mistério os postes de luzes amareladas, os prédios com suas poucas janelas acesas e os faróis dos outros carros que se locomoviam lentamente, desviando um dos outros, das ruas pequenas, dos sinais de trânsito que os impediam de seguir em frente e manter uma velocidade mediana.

O rádio permanecia ligado e, a cada música, o motorista tirava o pé do acelerador ou fazia com que o carro corresse mais. Dependia do ritmo, da forma com que ele fosse envolvido. O condutor não fazia de forma abrupta as oscilações de velocidade. Mantinha o pé encostado ao eixo de aceleração, a mão direita, quando necessário tocava levemente o câmbio, mas maioria do tempo, auxiliava a mão esquerda que permanecia ao volante, segurando também um cigarro que queimava lentamente.

Os olhos do condutor percorriam, por um segundo, todas aquelas ruas, uma por uma, ele as visitava, conseguia enxergar cada casa, cada cão de guarda, cada jardim bem cuidado ou não, cada reflexo da televisão ligada no vidro da porta. Quando se notou, tudo parecia em câmera lenta, apenas o que suas lentes recebiam seria o flash de luz dos automóveis, das poucas motocicletas, dos semáforos, e seus possíveis reflexos nas vitrines das lojas, nos tênis brancos luminosos dos transeuntes, nos retrovisores em movimento. O que captava: reflexos, sinais, todos lentamente processados. Talvez refletissem a paz de espírito que sentisse. Mas não era isso. Diante decisões, problemas, dúvidas, o motorista apenas dirigia na neblina.

Ele não estava sozinho. Tinha alguém ao seu lado. Em silêncio, mas estava lá. O mesmo silêncio que ele ouviu na outra noite. Ambos permaneciam quietos, o sinal fechou. O carro foi parando lentamente, enquanto a velocidade ia diminuindo, os olhos do motorista abaixavam-se para o asfalto negro, úmido da chuva que havia caído durante a tarde. A mesma música da outra noite começava a tocar. As mãos do condutor começavam a tremer, o sangue parecia gelar a cada batida, um arrepio subia pelas costas. Estava lembrando-se da outra noite.

O silêncio era tanto que se dava para ouvir a respiração deles. Não estavam mais conversando, discutindo. O que se ouvia eram as respirações ofegantes. Ele, o motorista que antes era o ouvinte, não precisaria se aproximar da porta, nem sequer fazer algum esforço. O que acontecia naquele quarto era passível de visualização. Naquela noite, a neblina não estava do lado de fora, estava dentro dele, do quarto, da casa. As mãos dele tocando com força as costas dela, os corpos despidos que se juntavam frente a frente, os seios dela roçavam no tórax nu. A respiração parecia aumentar, o ar ficava sem oxigênio como se uma fumaça branca tomasse o quarto lentamente. Ela estava sentada sobre ele, os seus membros já tocados, molhados de um quase gozo, de um delírio que guardavam para o final.

O movimento começava a ficar intenso, ela se virava sobre seus joelhos no colchão. O rapaz em estado de ereção encaixava-se nela por trás, segurando-a pelos cabelos, como se fosse trotar em um cavalo arredio. Ela agarrava o lençol bege da cama, estendendo seus braços sobre a cama vazia. Os olhos de ambos permaneciam fechados, abriam-se lentamente para um descanso da mente, para que os olhos pudessem gravar aos poucos o momento, a repetição. Ele, com seu membro ereto, ia para frente e para trás em um movimento que se firmava mais forte, a cada final de ciclo. Os gemidos baixos se faziam alto, os toques de pele que estalavam se tornavam presentes a cada segundo mais. As mãos dele agora seguravam os seios dela, as pontas dos dedos acariciavam ambas as auréolas, pressionadas pelos entre dedos, o que a fazia soltar um grito abafado de prazer.

Do outro lado da porta, os olhos fechados faziam da cena mais lenta na cabeça do quase espectador. Os corpos voltavam a se encontrar frente a frente, boca a boca. As línguas dançavam em um ritmo que seguia a música tocada pelos membros, freneticamente, aumentando. Os dentes eram colocados no pescoço, uma mordida para que se evitasse soltar mais um grunhido, a respiração permanecia forte, mas era interrompida pelos lábios dela que sugavam a pele do pescoço dele, fazendo com que ele puxasse o ar pelos dentes. Ele começava a abaixar a cabeça e começava a lamber a pele nua da garota, beijando-a, mordendo-a, até que ele chegasse no meio dos seus seios. Tudo acompanhado pelo compasso de seus membros que permaneciam juntos, vezes mais longe os pelos, vezes mais próximos.

A inércia do lado de fora de opunha ao movimento que se fazia dentro, do barulho constante. Como os carros que tinham passado pelo sinal aberto, enquanto o motorista de olhos baixos esperava. A neblina na rua fazia com que tudo se misturasse em uma memória apenas, fazendo com que a frente do motorista o preto do asfalto fosse um precipício para suas lembranças. “O sinal abriu”, disse a companhia ao seu lado. 

Ele, como se votasse de um transe, olhou para a pessoa ao seu lado com lentidão, os olhos ainda baixos focalizavam o painel do carro, cheio de cores, verde, amarelo, vermelho. “Põe a luz alta, o farol baixo não está ajudando na neblina”, completou o acompanhante. Mais uma vez, o condutor parou o movimento com os pés, olhou fixamente os olhos do outro. O carro começava a andar lentamente, o sinal fechara novamente, dois carros começavam a cruzar a avenida cada um vindo de um lado oposto, freadas bruscas, corpos para frente e para trás.

Os três carros parados no semáforo. Dois faróis com faróis e um ao centro. Mãos ao volante inertes. A neblina enganou a todos. “Está tudo bem?”, perguntou o motorista. Com uma afirmação com a cabeça, o passageiro passou a mão pelas pernas, mostrando ansiedade. Os outros dois carros permaneceram um frente ao outro, dando sinais de luz para que o outro prosseguisse. “Desculpa”, era só o que ele conseguia falar ao engatar a primeira marcha.

O passageiro não era ninguém da outra noite. Na realidade, para o motorista, não era mais ninguém fazia algum tempo. Ao chegar ao destino do acompanhante, os dois se entreolharam, esboçaram algo indefinido pelas suas bocas. “Me diga o que você quer ouvir”, começou o acompanhante. Os postes amarelos não iluminavam tão bem a rua por causa da neblina, o carro permanecera ligado com os faróis baixos. “Cansei de sinceridade, cansei de ter segredos, cansei de enxergar”, sussurrou o motorista. Ambos permaneceram em silêncio, e após se despediram com um beijo carinhoso que selava os lábios. Fechando a porta, o passageiro apenas disse, apoiando-se na janela do carro: “Não pisque, a neblina está muito forte. Faróis altos, certo?”.

Enquanto se distanciava, quarteirão por quarteirão, o motorista via pelo retrovisor a pessoa que estava parada ainda em frente a casa, tentando reconhecer na neblina os faróis vermelhos do carro ficando mais distantes. O motorista precisaria ligar os faróis altos, mas tinha receio de enxergar mais profundamente na noite. Os faróis baixos durante um dia de neblina funcionavam perfeitamente, o que não se pode ver a olhos nus apenas pode ser sentido de noite.

Os dias começavam com uma neblina espessa no meio da multidão, dos carros. A necessidade de enxergar tudo não valia o processo de se ligar os faróis. A bateria estava acabando, o peso no porta-malas era grande. Com os olhos baixos, o motorista daquela noite começava a caminhar devagar pela manhã pouco iluminada, como se algo em seus ombros doesse, como se as buzinas, os barulhos dos motores fossem entrando na sua cabeça e se tornavam indiferentes.

“Me diga o que você quer ouvir”, relembrou o motorista da fala do passageiro daquele dia. “Algo que não machuque os meus ouvidos. Algo que a neblina esconda e que ninguém mais possa nem ver, nem ouvir”. Quanto maior é o esforço para se ver na neblina, menor é a velocidade percorrida, menos desloca-se. Quanto maior a neblina, maiores os mistérios, os murmúrios, as dúvidas do que pode estar bem à frente. Os dias pareciam mais escuros naqueles dias."

(Texto produzido dia 04/04/10)